domingo, 8 de maio de 2016

ENTERRADO VIVO


Tributo ao poetinha. -Quem vai lembrar-se da dívida não paga e sentenciar: foi um velhaco. -Qual que vai mandar comunicado com referência ultra elogiosa: ao ilustre poeta e escritor!... -Quem, disfarçadamente, vai ajeitar um colarinho, aparelhar botões fora de esquadro, laços distorcidos em desalinho? -Quem vai proferir com voz embargada o discurso final, arremessar a primeira pá de cal, encerrando a cerimônia, pondo um ponto final? -Quem, ante perplexidade, vai ter de ser de mim arrancada para evitar maiores dissabores? -Quem de mim terá lembranças complacentes, dirá coisas doces ou rir de minhas tolices em vida, de minhas gafes? -Quem vai rir por gentileza ao relembrar uma de minhas piadas chatas, repetida em vida, até a exaustão, dos tempos de esclerosado? -Quem vai se lembrar com respeito indevido, perante reunião de amigos, dizendo: -O Doutor falava assim, ele disse assado. – Quem vai tirar a dor e a dúvida antes que enlouqueça. Esquenta não! Dúvida besta essa, isso passa. Antes que nada aconteça: cessa antes que a noite desça. – Qual vulto estranho – que ao transpor o muro – chorará no escuro uma lágrima furtiva? – Quem de mim dirá palavras doces: – foi um homem bom, deus o tenha? – Quem – a boca pequena – murmurará sacana: – foi um velhaco, já foi tarde. – Quem se lembrará de seus versos podres, plagiados de outros? – Qual – com mão de amigo – ficará comigo no instante trágico. – Quem de mim terá de ser arrancada aos prantos por inoportunos? – Qual se incumbirá de tarefas triviais, dos papéis e coisas tais? – Qual aquele que lerá em diagonal a inscrição banal: “Eu fui o que tu és, tu serás o que eu sou”. – Quem dirá que foi um louco que pensava entender um pouco dessa vida louca. Da vida, ora a vida! Não espero nada: são só umas poucas alegriazinhas (Rosa, Guimarães), o resto, puta merda: é só dor e sofrimento. – Quem, mirando o céu pressentindo abutres circulantes, exclamará incrédulo: “Dios, que es la vida?”(Quino). Uma vida alimentando outras vidas. Só isso? Uma transformação constante de vida em morte e morte em vida? Não é o bastante? A eternidade – mesmo se existisse – A ciência, num acesso de loucura, teríamos inventado a morte (Guilherme de Almeida).

PAISAGEM URBANA, O HOMEM ANÚNCIO


O homem anúncio: reclame ambulante. Simulacro de gente. Só um homem, um homem só na multidão e suas circunstancias. Só e somente na multidão ele pode anunciar. Tímido, ele observa os outros que nem o percebem. Lá vem triste o triste homem em sua indumentária de madeira, Armadura ridícula, suspensa dos ombros. As marcas no rosto, as dores da vida. Quero morrer simples, só morrer de dor: morrer deitado com muita honra e os parentes por perto. Eu, só, só eu e minha língua. Quando eu era criança meu pai me dizia: filho: a vida‚ uma merda. Não se pode dizer que tenha amigos, uns poucos gatos pingados e assim mesmo escasseando com o tempo, a ranzinzisse chegando com os janeiros às costas e já meio entrado em anos. Amigos tem, mas não íntimos, que o cidadão tem direito as suas reservas: com privacidade e segredo. Vive só de lembranças, os olhos no passado distante de sua antiga mocidade: -sofre duas vezes. O corpo dói, as varizes incomodam, a dor do expurgo ou a gota serena.. O sofrimento ‚ que aperfeiçoa o homem. O trem de Jandira chega tarde, como sempre atopetado de gente. As três, já está de pé, que o sono‚ pouco. De almoço, um pingado e pão com manteiga. Às vezes a sopa do albergue da LBV. No meio da multidão, caminhando a esmo, os passos trôpegos. Mesmo só, diria que mal acompanhado: fudido e mal pago. Faça sol ou faça chuva, lá está ele, indefectível, insólito como mosca na sopa.. Está em todo lugar, por dever de oficio, com sua indumentária ridícula. Mas não está em lugar nenhum, o pensamento longe: Lá em Pirituba, onde uma velha e seu crochê interminável esperam por ele, o velho. Homem sem face, retrato mudo de uma existência despercebida. Como um filme virgem, vazio, espetro, como mula sem cabeça. A vida passou, passando de lugar para outro, sem destino certo. Pela vida, passou em brancas nuvens, no dizer do poeta. Vai, onde uma roda de camelô: o homem da cobra e suas poções milagrosas, o remédio infalível pra calos. Passeia pela vida sua indumentária double-face: Duas placas incômodas, os dizeres monótonos: "Vende-se ouro, paga-se bem: Rua Direita número 100." Amigos: não tem. Se atrasar não volta. Ou dorme no albergue ou num vão de porta, num catre, Embaixo da escada, onde faz moradia. De seu, trastes velhos, bugigangas. Na volta do dia passeia feliz: com sorte um pingado ou encontra uma sopa, na Casa André Luiz. - Tudo passa na vida. Passa a vida passando que a vida é passar. "na vida tudo é passageiro, de menos o cobrador e o motorneiro." Um belo dia causa espécie, não aparece. Com certeza o derrame, o braço esquecido. Do serviço ele esquece que fica sem velho. Mesmo só, no meio da multidão, boiada, caminhando a esmo: diria que bem acompanhado Os problemas: nenhum, velhos sempre haverão a espera da vaga. A velha coitada nem fica sabendo. Outro dia a vizinha que vem com a notícia: "velho indigente encontrado morto é recolhido ao nosocômio do estado, Instituto médico legal. Um João ninguém, sem eira nem beira: nunca teve inimigo nunca teve opinião. Idade não tem, nem sabe ao certo, nas marcas do rosto, as dores da vida: Como única certeza, apenas a morte que ronda por perto. Sem qualquer aviso prévio, qualquer dia ela vem e acabou se o brinquedo. Como rês desgarrada: só na multidão, boiada, caminhando a esmo. Homem comum, incomunicável faz tempo. Não tem nada a dizer, nem nunca teve opinião. Incomum, sua marca registrada a vulgaridade: um homem ao pé da letra, só, um homem sozinho, com seus botões. Da vida, só colecionou amarguras.

terça-feira, 22 de março de 2016

MOEDAS EM BAROTES


Providencial movimento de terras veio revelar riqueza imensa, incalculavel, em dobrões de libras esterlinas, os dois donos, muito miseraveis, guardavam as moedas em perfurações de brocas e trados, nos barrotes. ligados a perseguição política: a versão se torna mais importante que a realidade, notícias envoltas em mistérios insondáveis de amores clandestinos, casos de incesto, cartas guardadas em segredo. é verdade: — que carneiro tem um bicho dentro da cabeça que mora lá? —que cavalo dorme em pé? —que cobra vem no quarto, põe o rabo na boca da criança e mama na mãe? —acontece a simpatia: o cachorro não exonera se cruzar os dedos num Acocho forte?

O HOMEM DE TREIS BAGOS


A VOLTA DO JUSTINO – Que jeito esse Polico? Me admira muito o que o povo andam dizendo! Diz que nesse tempo que passei nas Neves você que virou num valentão? Escutei umas prosa, que você anda cantando de galo pras vendas, rastando mala: que num tem homem procê nessa terra; que é muito macho e coisa e tal... me digue se é verdade que você tem treis bago como que anda dizendo...Me admira muito falar desse jeito, pq se é verdade, me mostra, pq somos dois: eu sim é que tenho treis tentos. Por isso q sou macho maxixo maduro e doce, está sabendo.E tem mais: tenho treis e dos grandes, num é pra me gabar nada não. – Ara, seu Justino, invencionice do povo pra me indispor com a sua excelência. Reverenciou o Polico ainda encolhido num canto. – Cumo é que é? Tem ou tem, desembucha logo. Deixa de ser subalterno, sô. Mostra logo a macheza que vive alardeando. ...Se tem, mostra logo, deixa de mamparra. – Baguico atoa, seu Manoel Justino, coisica de nada, mais parece uma íngua. Num passa de ser uma mula, coisa de doença venérica mal curada, consquência dum cancro duro. Agora sua excelência sim é q tem treis bagos, pra fazer justiça às sua grandezas machas.Merece de ter. Se sua excelente pessoa diz q tem é pq tem , gemeu o Polico cheio de dedos, a voz afinada de propósito, se pondo muito inferior. – ah! É assim é? Possa ser q seje. Tem outra coisa: como q andam dizendo q vc anda desrespeitando minha amásia, rbejando ela na minha ausência. Isso num ta certo! Me digue logo duma vez. – Ara seu maximiniano, invencionice dessa gente alcoviteira q num tem o que fazer. Pois quer saber? Eu até q sou meio chibungo. Sou viado de tudo.

DOBRÕES


recortes para uma história fantástica: vieram de mala e cuia. Caraminguás, bagulhos e breguetes. Trapizungas, traquitanas e catrevagens. —Fala que você está despeitado, fala! você está enrabichado, está incarnado nela. Fala ansim, mas quem desdenha, quer comprar, vamos: fala!...qué'de a macheza tua, porquera! encontrados dobrões na casa, nos porões. acreditam os mais céticos que postos lá de propósito. Aventa-se a hipótese de haver documentos históricos nas ruinas douradas. Colhidas as opiniões do dr Filadelfo, homem da capital, afeito ás lides forenses, pode se reconstituir os fatos com critério. —ha! como é triste e banal a realidade!